Dostoiévski e o Jiu-Jitsu: Virtude, Queda e Redenção no Tatame
Por Fabio Gurgel
. Preso político, condenado à morte e salvo no último instante, deportado à Sibéria, epiléptico, endividado, enlutado — e ainda assim, um dos maiores intérpretes da dor, da fé, da vaidade e da redenção.
Em sua monumental biografia, Joseph Frank descreve não só a genialidade de suas obras, mas a complexidade de seu caráter. Um ponto que me marcou foi sua leitura sobre a dialética da vaidade — a ideia de que o ato de fazer pelo outro pode também fazer bem a si mesmo. E que isso não anula a virtude: a amplia.
Essa tensão entre egoísmo e generosidade, queda e ascensão, está no centro de suas obras — e também no tatame.
O Jiu-Jitsu, como os romances de Dostoiévski, é um campo onde enfrentamos o pior e o melhor de nós mesmos. É onde a luta externa revela o que se passa por dentro.
O Idiota — A bondade como força
O Príncipe Míchkin, personagem central de O Idiota, é chamado de ingênuo por ser bom em um mundo cínico. Mas sua bondade não nasce da fraqueza — nasce da convicção.
No Jiu-Jitsu, também se confunde gentileza com fragilidade.
Mas só quem domina a luta pode escolher a calma.
A gentileza verdadeira exige força. E a verdadeira força se revela quando, podendo causar dano, escolhemos proteger.
Crime e Castigo — Culpa e redenção
Raskólnikov comete um assassinato em nome de uma teoria. Acredita estar acima da moral comum. Mas a culpa o corrói.
No Jiu-Jitsu, o ego pode nos levar a ultrapassar limites. A querer provar, impor, dominar.
Mas o caminho de volta sempre existe:
reconhecer o erro, aceitar a dor, recomeçar com humildade.
Não é apenas sobre vencer.
É sobre voltar inteiro depois de cair.
Os Irmãos Karamázov — Responsabilidade moral
O monge Zóssima nos lembra:
“Cada um é responsável por todos.”
No Jiu-Jitsu, esse é um princípio vital.
Um faixa-preta não está no topo: ele está à frente.
E o exemplo que dá forma todos à sua volta.
Talvez a maior prova disso seja o código universal dos três tapinhas de desistência.
Não importa a intensidade da luta, a rivalidade, a pressão:
quando alguém bate, a luta para. Imediatamente.
Esse pacto silencioso garante segurança, confiança, e permite que cada um vá ao limite — sabendo que será cuidado.
Todos cuidando de todos. Essa é a responsabilidade que forma uma comunidade forte e virtuosa.
Os Demônios — A destruição sem propósito
Neste romance sombrio, Dostoiévski mostra o que acontece quando uma geração perde o sentido — e se entrega ao niilismo, à destruição sem direção.
No Jiu-Jitsu, isso se manifesta quando se treina apenas pelo resultado.
Pela vitória vazia. Pelo status, pela vaidade.
Mas o foco exclusivo no resultado não extrai o melhor do lutador — apenas consome.
Quem constrói um legado entende que:
– Como se vence importa.
– Como se perde importa ainda mais.
– E, acima de tudo, quem você se torna é o que permanece.
É isso que transforma o tatame em uma escola de identidade.
A virtude que se espalha
Joseph Frank descreve a dialética da vaidade em Dostoiévski como o fenômeno de que, ao fazer o bem ao outro, também nos fortalecemos.
Essa ideia encontra eco na virtude do egoísmo, de Ayn Rand: ajudar não por caridade vazia, mas porque aquilo te torna melhor, mais inteiro, mais verdadeiro.
No Jiu-Jitsu, quando ensino, aprendo.
Quando protejo, me fortaleço.
Quando formo alguém, continuo me formando.
É nessa troca — entre força e gentileza, entre eu e o outro — que mora o poder transformador da arte.
Conclusão
Dostoiévski nos mostrou que o ser humano carrega dentro de si o abismo e a escada.
O Jiu-Jitsu nos coloca diante desse abismo a cada treino.
Caberá sempre a nós escolher:
Cair no ego ou subir pela virtude.
Porque a luta mais importante não é contra o outro —
É contra o que nos afasta de quem queremos ser.